Queridos amigos,
Essa semana o capítulo demorou um pouco mais para sair. Precisei extrair o siso e, confesso, fui vencido pela indisposição. A boa notícia é que sobrevivi (por pouco!) e finalmente consegui concluir o novo trecho da jornada de Jonas.
Agradeço pela paciência e companhia constante. Que a leitura de hoje encontre vocês em paz e com todos os dentes no lugar.
Com carinho,
Paulo
A caneta falhou duas vezes antes de assinar a linha final do prontuário. O enfermeiro apalpou os bolsos novamente até que retirou uma segunda caneta com um sorriso no rosto. Jonas não conteve a risada, afinal, ele parecia esperar que precisasse de mais que uma caneta durante o seu plantão.
— Um homem prevenido anda com duas canetas no bolso? — perguntou Jonas, satirizando.
— Se eu ao menos soubesse como elas foram parar no bolso, eu poderia te responder com mais certeza.
Áquila apertou os olhos, olhou para Jonas, depois para o papel, e então soltou um suspiro cansado. Folheou novamente os papéis em suas mãos e entregou ao paciente.
— Pronto. Pode ir. Tudo certo! O médico deixou um laudo e um encaminhamento para um cirurgião geral, para você fazer os acompanhamentos na sua cidade. Está também a receita dos medicamentos, e seu atestado.
— Obrigado!
— À disposição meu amigo! — Áquila por fim deu-lhe um aperto de mão, com um sorriso encorajador.
Aqueles pouco dias internado no hospital fez Jonas conhecer melhor o enfermeiro e seu veredito era que Áquila era um bom homem. Passou por muitas dificuldades na juventude: abandono do pai, um irmão usuário de drogas vizinhança violenta, entre outros problemas. Apesar das circunstâncias nada favoráveis, sua mãe era uma mulher de fé, e com ela Áquila superou todos os desafios para chegar onde estava, e estava vivia satisfeito. Não era um homem rico, nem de possuía muitos bens, não tinha uma carreira extraordinária e trabalhava em um hospital público que quase caía aos pedaços, mas, apesar de tudo, dizia que Deus o dera tudo que precisava.
“Nunca foi sobre ter muito, Jonas”, disse Áquila certa noite. Jonas havia tomado as medicações, mas o enfermeiro continuou lá, sentado em uma cadeira à beira da cama conversando.
“Mas ter o suficiente para que você não seja refém das riquezas, dos bens e de si mesmo”, concluiu Áquila.
Ele se levantou devagar, estalando os joelhos.
“Sabe o peixe que engole demais? Não alimenta ninguém. Só se envenena por dentro.”
Essa última fala, no entanto, ficou na mente de Jonas por um tempo.
Se despedir de Áquila era como ver partir um amigo de infância, e Jonas sempre foi péssimo com despedidas. Disse poucas palavras, quase nada. Ele abriu a mochila para guardar os papéis e então viu o dossiê dobrado no fundo da mochila, como um tumor escondido. Apesar do acidente, apesar da cirurgia, apesar da internação e da sua recuperação, nada isentava o fato que sua missão continuava. Aquele dossiê era o lembrete que estava em Nova Rava por um motivo, independente da circunstância que se encontrava.
Ao cruzar a porta do hospital, foi como ser arremessado num mundo diferente. A luz era mais dura do que lembrava, pois incomodava seus olhos. O ar mais era denso, e um cheiro acre de esgoto pairava como uma névoa suja sobre a entrada. Carros passavam apressados, motos rasgavam o silêncio com buzinas histéricas. Gente por todos os lados. Gente demais.
Nova Rava viva, pulsante, gritante, mas também... podre.
Jonas parou na esquina. Não sabia exatamente para onde ir. Não havia um destino traçado. As pernas começaram a andar por conta própria, talvez guiadas pelo instinto ou pelo incômodo cada vez maior em seu peito. O coração batia como se precisasse fugir do corpo.
As ruas de Nova Rava pareciam desbotadas. Os muros antes coloridos agora estavam cobertos por camadas de cartazes rasgados, pichações e as marcas da injustiça. Cada quarteirão era como uma cicatriz malcurada, cheias de marcas de abandono, de luto e de esquecimento. Para cada canto da cidade que olhava Jonas ficava mais espantado.
As calçadas, irregulares e sujas, obrigavam as pessoas a andarem com atenção, como se a própria cidade testasse os passos de quem ousasse cruzá-la. Lojas fechadas exibiam vidraças rachadas e letreiros pendendo por fios enferrujados. Do outro lado da rua, uma senhora puxava um carrinho improvisado, repleto de papelões, enquanto uma criança andava descalça ao seu lado, carregando um saco plástico com latinhas.
Havia uma névoa tênue no ar, não vinda do céu, mas de fogueiras improvisadas pelos becos os quais desabrigados usavam pra se aquecer durante a madrugada. Um cheiro indefinido pairava no ambiente, mistura de mofo, ferrugem e gordura queimada.
Ao longe, o som de uma sirene rompia o silêncio intermitente, como um alarme que a cidade já havia aprendido a ignorar. Um cão magro atravessava a rua com um olhar tão perdido quanto o de Jonas. E, em cada janela, um par de olhos vigiava o mundo com a cautela de quem já viu demais e espera o pior.
Nova Rava não era apenas uma cidade ferida, era uma cidade que aprendera a sobreviver com a ferida aberta.
Era difícil reconhecer algumas coisas. O que antes era um centro comercial agora parecia uma favela vertical. Prédios com vidraças quebradas, fios expostos, pichações por todos os lados. Um deles exibia em letras pretas: "A CULPA É DOS PROFETAS CALADOS"
Jonas desviou o olhar.
Passou por um grupo de crianças brincando numa rua interditada. Empilhavam entulhos para formar uma “fortaleza”. Usavam capacetes de operário, achados sabe-se lá onde. Uma delas gritava:
— A guerra tá chegando! A guerra tá chegando!
Riram. Depois correram quando um carro da polícia civil passou pela rua, piscando luzes vermelhas.
Ele tentou se concentrar no que via. Procurava sentido nos detalhes, mas o caos era esmagador. Em cada esquina, uma tensão. Um morador de rua apanhando de dois seguranças em frente a uma farmácia. Ele continuou andando. Memórias surgiam em flashes: a praça onde seu pai pregava nas tardes de sábado agora estava desmontado, ocupado por ambulantes. O campo de areia onde ele jogava bola com os colegas da escola, hoje um estacionamento improvisado. O colégio batista em ruínas. Uma placa pendurada dizia “VENDE-SE”.
Nada parecia igual.
Ou talvez, pensou, tudo estivesse igual demais.
A voz veio como um sussurro atrás dos olhos:
“Era isso que você queria esquecer?”
Jonas parou. Olhou ao redor. Ninguém havia falado. Mas ele escutou.
“Você voltou. Mas já está pensando em fugir.”
Ele esfregou o rosto, como se pudesse apagar o pensamento. Continuou andando.
— Com licença… — uma voz fina, real, dessa vez — Moço, me ajuda?
Ele virou-se. Uma mulher jovem, de camiseta manchada e o olhar suplicante, carregava nos braços um menino magro, desacordado.
— Tem uma clínica aqui perto, mas eu não consigo sozinha. Por favor.
Jonas hesitou. Depois assentiu. Ela passou o menino para seus braços. O garoto estava leve demais. Febril. Tinha os pés machucados, cobertos de poeira.
— Ele tá doente faz dias — a mulher explicou, andando ao lado. Sua voz era sussurrante, fraca, como se fosse desaparecer a qualquer instante — mas o posto do bairro fechou. Só atende com encaminhamento agora. Falaram que lá no Centro Comunitário ainda recebem. É ali no fim da rua.
Foram caminhando a maior parte do trajeto em silêncio, exceto pelo som dos passos e o zumbido distante da cidade. O menino respirava com dificuldade. Jonas sentia o peito subir e descer em ritmo irregular e seu esforço para continuar respirando.
— Ele é seu filho? — perguntou.
— Irmão. Meu pai sumiu. Minha mãe... foi embora. Eu cuido dele.
Jonas olhou para ela. Não devia ter mais que dezenove.
— Desculpa, você não é daqui, né? — ela perguntou.
Ele balançou a cabeça.
— Voltei depois de muito tempo.
— Mudou, né?
— Um pouco.
Ela assentiu, depois disse:
— Antes a gente tinha medo do escuro. Agora é da luz.
Jonas a olhou, confuso.
— De noite é mais fácil esconder o que acontece, mas de dia... de dia é tudo tão claro, que dá vergonha até de olhar.
Chegaram à clínica. Um galpão improvisado, com lonas coloridas e grades nas janelas. O cheiro de álcool e mofo misturava-se no ar abafado. A recepcionista, uma mulher de jaleco manchado, fez um gesto apressado, pegou o menino nos braços com uma firmeza prática e desapareceu por uma cortina puída que balançava com o vento quente.
Jonas ficou parado à porta, com o sol cortando sua silhueta nas costas. A jovem olhou para ele, ofegante, ainda segurando a pequena mochila que antes carregava o menino.
— Obrigada — disse, com a voz trêmula, como se o corpo finalmente tivesse permissão para sentir o cansaço.
Jonas assentiu, mas não respondeu. Seus olhos estavam fixos nas paredes da clínica, nas prateleiras improvisadas com caixotes, nos ventiladores que giravam preguiçosos no teto. Cada canto parecia gritar socorro em silêncio.
— Você mora por aqui? — ele perguntou, tentando puxar o próprio pensamento de volta à realidade.
Ela fez que sim, com um sorriso curto, cansado. — No beco da Serrana. Antes, morávamos no antigo conjunto São Miguel, mas demoliram tudo. Iam usar o terreno para levantar um shopping, mas o projeto foi embargado.
Jonas não sabia o que responder. Sentia-se intruso naquele cenário. Um forasteiro observando ruínas que não compreendia por inteiro.
— Qual seu nome? — ele perguntou.
— Miriam.
— Ele vai ficar bem — disse, por fim, talvez mais para si mesmo do que para ela.
Ela assentiu outra vez. E, então, pela primeira vez, Jonas sentiu algo que não sabia nomear: não era apenas compaixão, tampouco culpa. Era como se Deus estivesse ali, entre as lonas e as paredes suadas, olhando para ele.
Olhou de novo para a cortina. Ainda balançava. O menino estava além dela. E, de algum modo, ele também.
— Vai melhorar, sim — ela disse com convicção, e depois, olhando nos olhos de Jonas — Deus ainda tá vendo.
Jonas quis responder, mas não conseguiu.
Virou-se e saiu.
As últimas quadras foram percorridas em silêncio. A cidade parecia ter se calado também. O fim da tarde tingia os muros de vermelho. Passou por becos onde crianças brincavam com pneus velhos, por homens em silêncio fumando sentados no chão, por uma mulher lendo um salmo em voz alta para ninguém.
E então, parou.
O portão estava ali. Enferrujado, encurvado pelo tempo. Atrás dele, um terreno baldio. Mato alto, pedras, e restos de madeira. Um cartaz rasgado ainda deixava visível parte das palavras: IGREJA EVANG… STICA RENOVAD… Jonas se aproximou. Segurou a grade com as duas mãos. O sol batia de frente em seu rosto, cegando-o. Teve que fechar os olhos por um instante.
Quando os abriu de novo, era como se tudo tivesse silenciado ao redor. Nenhum carro passava. Nenhuma voz vinha das casas vizinhas. O tempo parecia suspenso. Na memória, viu os bancos de madeira enfileirados, o púlpito simples feito pelo próprio pai, o cheiro da sopa sendo servida nas noites de culto, as mãos levantadas em adoração, os coros desafinados mas fervorosos. O riso das crianças correndo pelo pátio, o som abafado do violão durante a ceia.
E então, o estalo da madeira em brasa. O clarão. O grito que não conseguiu dar naquela noite.
Jonas apertou mais a grade. O ferro frio contrastava com o calor que invadia seu peito. Algo entre raiva e saudade.
— E então… — murmurou, como se falando com o terreno ou com o céu — era isso que sobrou?
Nada respondeu. Só o farfalhar do vento nas folhas secas. Ali, entre o mato e os escombros, no mesmo lugar em que sua fé havia sido enterrada, Jonas sentiu que algo começava a brotar. Ainda não sabia se era esperança ou apenas mais um engano, mas não conseguiria sair dali tão cedo.
Ele deu um passo para trás e respirou fundo.
A mochila pesava. O dossiê dentro dela parecia vibrar.
E pela primeira vez naqueles dias, ele disse em voz alta, sozinho:
— E o que eu faço agora?
O som da própria voz soou estranho aos seus ouvidos. Áspero, ressecado, como se há muito tempo ele não conversasse com ninguém que realmente escutasse.
“Você já sabe.”
Jonas fechou os olhos. Apertou as mãos em punhos. Não havia roteiro. Não havia mapa. Apenas uma certeza incômoda, quase cruel: ele precisava começar. Precisava dizer. Precisava romper o silêncio dentro de si e fora também.
Abriu a mochila e olhou para o dossiê. As páginas marcadas, os nomes, os rostos. A podridão encoberta por discursos religiosos e promessas políticas. Tudo ali. Uma cidade inteira escondida debaixo da sujeira, sufocada por líderes que diziam falar em nome de Deus, mas que não passavam de falsários bem vestidos.
Ele não sabia por onde começar, mas talvez fosse justamente isso: começar. Nem que fosse com uma palavra. Um nome. Um aviso.
Fechou a mochila e olhou novamente para o terreno baldio e Jonas assentiu com a cabeça, sem entender completamente para o quê.
Virou-se e deu os primeiros passos para fora. O sol ainda ardia sobre Nova Rava, mas havia algo diferente no ar, como se a cidade também estivesse prendendo a respiração, esperando por aquilo que ele viria a dizer.
Se você chegou até aqui, meu muito obrigado. É uma alegria poder compartilhar essa história com você, capítulo após capítulo.
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Até o próximo capítulo. Que a caminhada nos leve sempre mais fundo.
Que história boa!!! Quero mais capítulos! Deus ilumine sempre!!