— Central de Emergência, boa noite. Em que posso ajudar?
A voz de Ana Clara era firme, treinada para manter a calma mesmo quando o mundo do outro lado da linha parecia desmoronar. Eram quase 22h, e a chuva não dava trégua desde o fim da tarde. O som de trovões preenchia o fundo da central, e os alertas de deslizamento já haviam sobrecarregado o sistema ao longo da noite.
Estava sendo uma noite atípica. Devido a intensa chuva, as ocorrências de acidentes da macrorregião aumentaram consideravelmente. Em dias normais, atenderia uma ligação no intervalo de 40 minutos, mas naquela noite, uma a cada dez.
— É… É um rapaz! Ele… Ele foi atropelado! — a voz do outro lado tremia, abafada por estática e vento. — Aqui na BR-109, perto da curva da Serra da Bocaíuva. Ele saiu do nada do ônibus, criou muito caso, gritando sei lá o que. O motoqueiro tentou desviar, mas...
— Senhor, respire fundo. Está tudo bem. Me diga seu nome.
— Leandro. Eu tô tentando ajudar ele.
— Leandro, o atropelado está consciente?
— Não… Não parece. Tá respirando, mas tá desacordado. Tem sangue no rosto e no braço. A moto também caiu. O cara da moto tá com a perna presa.
Ana Clara digitava rápido no sistema.
— Entendido. Leandro, preciso que permaneça na linha. Já vou te passar para o médico para ele confirmar algumas informações. Preciso que me diga exatamente a localização. Tem alguma referência?
— Tem uma placa caída aqui diz “Nova Rava - 140 km”. A curva é bem fechada. Não tem acostamento. Tá difícil de ver qualquer coisa com essa chuva!
— Certo. Permaneça no local. Mantenha a calma e, se possível, sinalize a estrada com o farol do carro. Não tente mover os feridos.
Ana Clara apertou um botão no painel acima do teclado.
— Doutor Henrique, temos código vermelho na BR-109. Acidente com múltiplas vítimas, colisão entre pedestre e moto. Um inconsciente, um preso na moto.
— Nossas duas unidades estão ocupadas em outras ocorrências. Vamos acionar a USA de Ferruginha para atender essa.
A ocorrência seguiu para o chat do sistema.
“USA de Ferrruginha, acidente na BR-109 na altura da Serra da Bocaiúva, em curva fechada. Um inconsciente e um preto à moto”, digitou Henrique.
“Estamos sem médico na USA, operando apenas com unidade básica”
— Merda! Quanto tempo de distância daqui para o local do acidente?
— Talvez uns 20 minutos, mas nessa chuva deve levar mais tempo.
— Quanto tempo para uma das nossas USA terminar o atendimento?
— Estão a cinco minutos da UPA.
“Enviem suas USB’s, enquanto a USA de Vereador Valedo fará a interceptação na entrada da cidade”.
“Confirmado. Saindo.”
Imediatamente Henrique se direcionou ao operador de frota.
— Gabriela, preciso que assim que saírem da UPA façam uma interceptação na entrada BR-109. Estabilizar o paciente e direcionar ao hospital de Porto Aurélio. Estou passando as informações para vocês.
— Doutor, informaram que estão em superlotação, metade dos leitos estão fechados para infecção respiratória, temo por não conseguirem fazer a admissão dele lá também.
Henrique se voltou novamente para Ana Clara.
— Qual é o outro hospital mais próximo para nós?
— MAFE, Hospital Municipal Alexandre Freitas de Farias, em Nova Rava. Levaria pelo menos duas horas para chegar — ela respondeu conferindo a informação no computador.
— Está sendo uma noite muito complicada. Então se conseguirem estabilizar o paciente, encaminhe-o para MAFE, em Nova Rava. Qualquer intercorrência comuniquem rápido para novas tratativas. Enquanto isso vou tentando falar no hospital do Porto Aurélio.
— Certo, Doutor! — respondeu Gabriela desligando a ligação.
Minutos depois, a sirene cortava o som da chuva enquanto o veículo avançava estrada adentro. Dentro da ambulância, os equipamentos vibravam nas curvas, e o rádio estalava a cada atualização da central.
Na cena do acidente, faróis do carro de Leandro iluminavam o corpo de Jonas caído de bruços, o corpo encharcado, mas sendo coberto por alguns guarda-chuvas dos passageiros. Os braços abertos como os de alguém rendido e um filete de sangue se misturando com a água que escorria pela estrada. A moto estava caída alguns metros adiante, ainda soltava fumaça do motor quente na chuva e o motorista com a perna presa entre a roda dianteira.
Os socorristas de Ferruginha protegidos por capas amarelas se ajoelharam ao lado de Jonas.
— Sem resposta a estímulos. Pulso fraco, mas presente. Pupilas reagindo. Fratura exposta no antebraço esquerdo. Ferimento contuso na cabeça e rebaixamento de consciência. Provável TCE leve.
Já preparavam a tala enquanto estabilizavam a cervical.
— Precisamos levar agora. Pressão está caindo rápido, vamos manter um soro correndo.
— E o motociclista?
— Consciente, fratura na perna. Estável. Mandamos outro suporte básico pra ele. Esse aqui precisa de remoção urgente. Vamos, a USA daqui a pouco chega no ponto de encontro.
O paramédico fechou as portas da ambulância com um estrondo abafado pela chuva. Gabriela, já ao volante, conferia pelo retrovisor os sinais vitais no monitor portátil instalado ao lado da maca. A sirene voltou a soar, um uivo cortando a escuridão enevoada da estrada.
— Central, paciente estabilizado, mas com queda de pressão arterial. Realizando oxigenoterapia, mantido em colar cervical e tala imobilizadora. Destino redirecionado para Hospital MAFE, Nova Rava. Tempo estimado: 1h50 — informou Gabriela pelo rádio, a voz firme apesar da tensão.
Dentro da ambulância, o auxiliar ao lado de Jonas ajustava os cintos da maca. O rosto do jornalista estava parcialmente coberto por sangue misturado à água da chuva, a respiração ruidosa, entrecortada. Apesar da sedação leve, o corpo se mexia em espasmos leves, como se resistisse a algo invisível.
— Ele está reagindo — murmurou o socorrista. — Mesmo inconsciente.
E, de fato, dentro da mente de Jonas, algo se agitava.
Em meio à névoa da inconsciência, imagens desfocadas surgiam: a mão de seu pai segurando uma Bíblia aberta, a antiga igreja em chamas, rostos de pessoas desconhecidas lhe pedindo ajuda, e entre cada cena.
Um sussurro que vinha de dentro, reverberando como eco em paredes vazias. Jonas gemeu levemente. O socorrista se inclinou.
— Está acordando?
Nada além de outro gemido e o ranger de dentes. O corpo ainda não reagia, mas a mente, sim. Estava sendo puxada de volta.
Mais imagens surgiam: a estrada molhada, a senhora do ônibus dizendo que ele não devia fugir de Deus, o farol da moto vindo em sua direção.
Do lado de fora, a tempestade parecia piorar, como se o próprio céu reafirmasse a gravidade daquela viagem. Dentro da cabine, Gabriela forçava o volante nas curvas, desviando de galhos, poças d’água, e por vezes diminuindo a velocidade para manter a estabilidade do veículo.
O rádio estalou.
— Central para Unidade de Suporte Avançado, confirmação de admissão no Hospital MAFE. Emergência lotada, mas abertura garantida mediante chegada. Isolamento preventivo será aplicado.
Gabriela respondeu com um simples "Entendido", aliviada por ter uma rota certa. O relógio no painel marcava 22h47. Ainda faltava muito para a entrada de Nova Rava, porém agora, a cada quilômetro mais próximo da cidade parecia estar mais longe da tempestade.
Lá dentro, Jonas começou a mover os lábios. Não formava palavras claras, mas o som que escapava entre seus dentes parecia um pedido, uma entrega, uma confissão. O socorrista franziu a testa, se aproximando mais.
— Está tentando dizer algo?
Jonas arfou.
— Eu...
O auxiliar olhou para Gabriela, surpreso.
— Ele está consciente.
Gabriela respondeu sem tirar os olhos da estrada:
— Mantenha ele acordado. Estamos chegando.
Jonas abriu levemente os olhos. Não viu rostos, nem formas. Tudo era borrado. Seus dedos se moveram com dificuldade, mas sentia a mão do socorrista sobre ele, mas sem seguida uma segunda mão repousou sobre seu peito e a voz falou uma última vez antes de ele apagar novamente:
“Agora que você está indo, Eu irei contigo.”